CAPÍTULO II

PROCESSO REVOLUCIONÁRIO

28. REFORMA AGRÁRIA


“No Minho com pés de linho

no Alentejo com pão

no Ribatejo com vinho

na Beira com requeijão

e trocando agora as voltas

ao vira da produção

no Alentejo bolotas

no Algarve maçapão

vindimas no Alto Douro

tomates em Azeitão

azeite da cor do ouro

que é verde ao pé do Fundão

e fica amarelo puro

nos campos do Baleizão.

Quando a terra fôr do povo

O povo deita-lhe a mão!

É isto a reforma agrária

Em sua própria expressão:

A maneira mais primária

De que nós temos um quinhão

Da semente proletária

Da nossa revolução.”

“As portas que Abril abriu” Ary dos Santos


(15 Abril de 1975) - Reforma Agrária (DL203-C/75) - Anexo 3

Podemos ler no diploma:

“As acções de reforma agrária a levar a cabo orientar-se-ão fundamentalmente em duas direcções: uma de apoio aos pequenos e médios agricultores, outra visando resolver a grave questão da propriedade e de exploração da terra no Sul do País. Como passo de fundo desta orientação, estará sempre presente a preocupação de associar estreitamente à acção do Estado os trabalhadores agrícolas e os pequenos e médios agricultores.

A curto prazo serão concretizadas as seguintes medidas:

1. Nacionalização global dos prédios rústicos que, no todo ou em parte, se situem nos perímetros dos aproveitamentos hidroagrícolas levados a efeito com investimentos públicos, pertencentes a indivíduos ou sociedades que sejam proprietários, no conjunto dos perímetros, de uma área superior a 50ha de terra, ajustável, tendo em conta as diferenças de rendimentos dos vários perímetros.

2. Expropriação das propriedades de sequeiro de área superior a 500ha, de terra média ajustável em função do rendimento, com garantia de propriedade a favor dos expropriados de uma área de 500ha, ajustável em função do rendimento.

3. Expropriação das propriedades rústicas irrigadas de área superior a 50ha, ajustável em função de rendimento, com garantia de propriedade a favor do expropriado de uma área de 50ha, ajustável em função do rendimento.

4. Crédito agrícola.- Criação de um sistema de crédito agrícola de emergência, pessoal e em natureza, para satisfazer as necessidades dos pequenos e médios agricultores, facilitando a aquisição de fertilizantes e correctivos, sementes e propágulos, pesticidas, rações, complemento necessário à alimentação animal, e pequeno equipamento indispensável à boa produtividade das explorações agrícolas e com o objetivo fundamental de incrementar a produção.

5. Baldios

Consagra-se o princípio da restituição dos baldios aos seus legítimos utentes, que passarão a administrá-los, através das respectivas associações, exclusivamente ou em colaboração com o Estado.

Haverá um trabalho prévio de delimitação dos baldios e, dentro deles, das áreas de cada freguesia.

A administração assentará em unidades de gestão submetidas a planos de utilização e geridas através de uma estrutura orgânica que se apoiará nos serviços oficiais, necessariamente transformados.

6. Intervenção do Estado nas cooperativas de transformação onde se encontrem investidos vultosos capitais públicos e com diminuta participação de capital social no montante global dos investimentos, de modo a garantir o pleno aproveitamento dos equipamentos, coordenando a produção das diferentes unidades e promovendo uma gestão eficaz.

7. Extinção do regime de coutadas e adopção de medidas conducentes ao ordenamento cinegético.

8. Publicação de legislação definindo inelegibilidades com vista ao saneamento imediato dos corpos gerentes das cooperativas.

9. Lançamento de equipas de apoio e desenvolvimento agrário, que actuarão ao nível de grupo de concelhos, com as seguintes finalidades:

a) Promover a constituição de ligas e sindicatos e auxiliar a consolidação dos existentes;

b) Fornecer aos agricultores todos os esclarecimentos sobre associativismo, crédito e toda a legislação, nomeadamente a Lei do Arrendamento Rural;

c) Actuar no sentido do saneamento das instituições locais (cooperativas, grémios, …) e lutar para que sirvam os pequenos e médios agricultores;

d) Canalizar o apoio técnico dos serviços regionais do Ministério da Agricultura e Pescas em benefício dos pequenos e médios agricultores;

e) Actuar como pólo fixo em torno do qual se articularão todas as campanhas culturais e de saúde (MFA), de alfabetização (serviço cívico), etc., num processo total que dinamize as comunidades camponesas, integrando-as plenamente no processo democrático em curso.

10. Lançamento de uma campanha de promoção da produção de cereais forrageiros, em especial de milho, visando reduzir a nossa dependência do exterior quanto a estes produtos. Esta campanha, que tem como objectivo um incremento significativo da produção anual, será realizada em especial nas zonas de minifúndio e integrará acções para melhoria técnica das explorações e o apoio ao associativismo agrícola.

11. Campanha contra as bruceloses, sendo indemnizados os proprietários dos animais cujo abate se imponha.

12. Reorganização do circuito de comercialização da carne.”

(29 Julho de 1975) - Fixa as normas a que deve obedecer a expropriação de determinados prédios rústicos (DL406-A/75)

Transcreve-se na íntegra o preâmbulo do DL406/75:

“Os latifundiários e, nas últimas décadas, os grandes capitalistas agrícolas constituíram o estrato social dominante no campo durante o fascismo. Esse domínio, de que constitui veículo e garante fundamental o aparelho de estado fascista, assentou na exploração desenfreada dos operários agrícolas e na espoliação e submissão dos pequenos agricultores.

A liquidação do fascismo e das suas bases implica, no campo, a destruição do poder económico e social daquelas camadas que, embora desapossadas do poder de Estado e do controle de largas área do seu aparelho pelo processo político iniciado em 25 de Abril de 1974, continuam, sob várias formas, a exercer o seu domínio sobre as camadas populares rurais.

Com efeito, a detenção da grande propriedade da terra e dos meios fundamentais de produção agrícola por parte daqueles estratos sociais, mesmo num contexto político transformado, não só representa o prolongamento da exploração e da espoliação, como acarreta a reprodução das próprias condições do seu domínio social e ideológico.

Se a reforma agrária que se pretende desencadear responde a um imperativo de libertação das forças produtivas relativamente aos estrangulamentos produzidos por formas de propriedade da terra e dos meios de produção que passaram a contrariar o desenvolvimento daquelas forças, importa não esquecer, por um momento, que hoje, em Portugal, essa reforma agrária começa por ser, concretamente, um processo político fundamental de liquidação dos grandes agrários, de liquidação das camadas sociais que têm até agora dominado o campo.

A liquidação do domínio dos grandes agrários é parte integrante e essencial do processo de destruição do fascismo e das suas bases sociais e surge, como condição fundamental, no caminho da libertação e emancipação dos operários agrícolas e dos pequenos agricultores no caminho da construção de uma sociedade democrática.

Este processo não constitui, no entanto, no que tem de profundo e essencial, um facto ou uma iniciativa do poder de Estado: é de todo em todo irredutível um quadro de medidas administrativas e legais por cujos carris se ambicionasse fazer seguir linearmente uma reforma agrária comandada pela Administração Central. Tem de construir-se e em larga medida constitui-o já, obra do poder de iniciativa, de imaginação, de organização, de luta e de trabalho dos operários agrícolas e dos pequenos agricultores. E é de justiça elementar reconhecer, no preâmbulo de um diploma como o presente, a importante contribuição que estas camadas têm dado para avanço e aceleração do processo de reforma, já depois de 25 de Abril de 1974, na linha das lutas históricas travadas pelos assalariados rurais do Alentejo contra os grandes agrários e o fascismo, e que tiveram o seu ponto mais alto no início da década de 60.

Os dispositivos legais contidos no presente diploma constituem apenas um quadro geral de ataque à grande propriedade e à grande exploração capitalista da terra. Resultado político da tradição de luta, das iniciativas e das conquistas de operários e pequenos agricultores, pretendem colocar-se agora, como instrumento e como estímulo, ao serviço dessas camadas.

Momento estatal num processo social de que são protagonistas principais as classes dominadas do campo e cuja dinâmica é eminentemente local, importa saber ver, portanto, neste diploma, por um lado, uma síntese parcelar de experiências e conquistas e, por outro, um apelo e um quadro para que a iniciativa popular se desenrole e implante, na base de múltiplas assembleias locais, a quem competirá impulsionar a própria reformasem prejuízo, aliás, do imprescindível concurso das associações de classe e de outros órgãos específicos.

Enquanto momento estatal, deve sublinhar-se ainda o carácter deliberadamente parcelar do presente diploma, já que se limita, praticamente, a prever e regular o processo de desapossamento da grande propriedade da terra e da grande exploração capitalista dos estratos até agora dominantes e seus agentes mais poderosos.

Embora se aponte desde já para a institucionalização de formas embrionárias de iniciativa e organização social local, com papel a desempenhar na dinâmica de liquidação dos grandes agrários e de construção de novas formas de produção e de vida, relega-se para próximos diplomas quer o regime das novas formas de organização da produção, quer a definição de um novo estatuto jurídico da terra, da água e da floresta em que se discipline a respectiva atribuição, uso, posse e circulação.

É que esse regime e esse estatuto também não podem, nem devem, brotar unilateralmente do Estado: têm de nascer, eles também, em larga medida, das iniciativas e das lutas locais, da vontade das assembleias que, pelo campo fora, de aldeia em aldeia, forem assinalando o contrôle do processo produtivo pelas classes trabalhadoras.”

A Reforma Agrária vivida nos campos de Portugal, foi uma das mais profundas alterações na vida dos portugueses, realizadas em consequência da Revolução de Abril. As movimentações e a força organizada dos operários agrícolas, dos pequenos e médios agricultores, contagiaram e arrastaram outras camadas da população para a batalha da produção em jornadas grandiosas de combatividade, solidariedade e alegria de viver. Fez-se história. A coragem e abnegada entrega daqueles trabalhadores à Revolução, inspirou poetas como Ary dos Santos, que lhes dedicou alguns dos seus melhores poemas, escritores como José Saramago, pintores como Rogério Ribeiro e muitos outros artistas e intelectuais portugueses e estrangeiros.

Os diplomas constantes do ANEXO X, dão conta da imensidão de terra envolvida neste processo revolucionário. As Portarias de 557/75 a 579/75, têm a assinatura do Ministro Fernando Oliveira Baptista, do Governo presidido por Vasco Gonçalves e as restantes são assinadas por Lopes Cardoso, Ministro do VI Governo Provisório.

O Sindicato dos trabalhadores Agrícolas e o Secretariado das Unidades Colectivas de Produção/Cooperativas Agrícolas, criados a partir de 1977, tiveram um papel fundamental nas questões da gestão da produção e no envolvimento e participação dos trabalhadores nos processos de decisão. Foram organizadas 12 Conferências da Reforma Agrária e todos os anos, se realizaram “Encontros de Culturas”, normalmente dois por ano, um dedicado à época das culturas de Primavera e outro às de Outono, onde eram debatidas as orientações agrícolas para a campanha que se avizinhava e as opções técnicas e inovações a introduzir, com participação de trabalhadores e técnicos.

As conclusões destes encontros, constituem um manancial de informação importantíssimo para o estudo da Reforma Agrária e são, muito especialmente, a prova irrefutável da justeza deste projecto maior da Revolução de Abril, atirando para o lixo da história as vergonhosas campanhas de descrédito lançadas pelos seus opositores.

À distância de quase quatro décadas, passadas sob o domínio destruidor das teses neo-liberais, que transformaram Portugal num país perigosamente dependente do exterior para garantir a sobrevivência alimentar da sua população, impõe-se questionar:

O que seria hoje o Alentejo, em termos de produção agrícola, se a Reforma Agrária tivesse, como devia, prosseguido o seu caminho libertador?