CAPÍTULO III

DEPOIMENTOS

Tal como referimos nas primeiras páginas apresentamos a seguir depoimentos desenvolvidos por dirigentes da ACR/Associação Conquistas da Revolução sobre temas relacionados, quer com a luta antifascista, próxima do 25 de Abril, quer sobre outras questões pouco referidas nos diplomas legais cuja divulgação, 40 anos depois, nos apraz reforçar.

3º CONGRESSO DEMOCRÁTICO DE AVEIRO

Duran Clemente, fundador e dirigente da ACR.

O 3º Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro entre 4 e 8 de Abril de 1973 constituiu, a muitos títulos e por variadas razões, um importante êxito da luta antifascista em Portugal e um sólido e incontestado testemunho da persistente contribuição para a unidade das forças de oposição à ditadura fascista.

O Prof. Rui Luís Gomes, na qualidade de Presidente do Congresso em que fora investido por vontade unânime da Comissão Nacional, foi impedido pelo fascismo, ao não permitir o seu regresso do exílio, de presencialmente declarar a abertura do Congresso no Cine-Teatro Avenida. Coube ao antifascista Álvaro Seiça Neves ler o seu telegrama declarando aberto o Congresso.

Os participantes nesta sessão inaugural teriam certamente boa consciência de que, para trás, ficava um aturado, laborioso e amplamente participado trabalho preparatório com uma firme e fundamentada convicção de que aquela realização iria significar um forte impulso na luta do movimento democrático contra o fascismo e designadamente na sua intervenção na farsa eleitoral marcada para Outubro desse ano. Mas não podiam saber – e ninguém honestamente podia saber ou adivinhar – que se estava à beira do último ano de vida da ditadura e a um ano do 25 de Abril.

A preparação do Congresso assentou, durante meses em centenas de reuniões pelo País fora, na constituição de amplas Comissões Distritais, Grupos de Trabalho, Comissões Coordenadoras e uma Comissão Nacional com cerca de 500 elementos de todas as zonas do País.

As eleições de 1969 tinham marcado um ponto de viragem e de ruptura com uma certa concepção conspirativa. As novas e distintivas características que o 3º Congresso da Oposição Democrática assumiu e bem assim a natureza das orientações políticas fundamentais que nele foram aprovadas testemunharam, por referência aos meritórios 1º e 2º Congressos (respectivamente, de 1958 e de 1969), um processo não apenas de assimilação crítica de experiências e orientações anteriormente prevalecentes, mas também uma evolução de concepções determinada por patentes alterações na correlação de forças dentro do campo da oposição antifascista que já se vinha desenhando e afirmando, no plano do movimento democrático, exactamente desde as referidas «eleições» de 1969. E surge como indiscutível que nessa evolução e nessas mudanças pesaram, entre outros factores e de forma determinante, a própria dimensão da luta da classe operária, os audaciosos avanços e posições conquistadas nos sindicatos e a integração na luta legal e semi-legal de novas gerações de estudantes e jovens trabalhadores.

A constituição de Comissões Eleitorais (CDE’s) por todo o País, forçando a abertura de sedes e mobilizando milhares de democratas introduziu uma nova dinâmica popular, de unidade na acção e de convergência democrática na organização e na luta pela liberdade.

Método que desaguou no 3º Congresso da Oposição Democrática traduzido na elaboração de 169 teses das quais 67 eram colectivas. E se encontramos entre os autores das teses grandes vultos da democracia e da intelectualidade, muitos dos quais destacadas figuras da vida pública no Portugal de Abril, também lá encontramos teses elaboradas por operários, camponeses, jovens, mulheres numa imensa mobilização popular que, aliás, constituiu o principal fermento da luta contra a ditadura e sua queda.

As teses apresentadas ao Congresso, os vivos debates que ocorreram, as conclusões aprovadas, percorreram todos os temas importantes, à época, da sociedade portuguesa. Questão central, presente em quase todas as secções, a exigência do fim do regime fascista e da guerra colonial, a liberdade de reunião, de associação, de expressão. Mas também as questões laborais e os direitos dos trabalhadores, o desenvolvimento global do País, o desenvolvimento regional e local, a situação da juventude, as questões da educação, do desporto e da cultura, a segurança, a saúde e até o urbanismo e a habitação, teses que só por si pressupõem um imenso trabalho de preparação prévia.

Apesar da censura e da repressão, a ditadura não foi capaz de silenciar o Congresso. A imprensa nacional - embora a muito custo e com as notícias muito mutiladas - e a imprensa internacional foram como “obrigadas” a fazer eco do acontecimento.

A brutal repressão desencadeada contra a concentração e a romagem à campa de Mário Sacramento na manhã de 8 de Abril de 1973, de que resultaram mais de 70 feridos, foi a expressão do pânico que o Congresso provocou no regime, mas também do seu enorme êxito.

Notável a solidariedade do povo de Aveiro, abrindo espontaneamente a porta das suas casas para abrigo dos congressistas das cargas policiais, dos bastões e dos cães-polícia. Mas o clima de intimidação e perseguição e a repressão contra o Congresso tinham começado muitos dias antes: prisões de quem colocava cartazes a anunciarem o Congresso; proibição de sessões de trabalho preparatórias; encerramento do parque de campismo de Aveiro; retenção dos comboios e camionetas que transportavam os congressistas, múltiplas operações stop. Aveiro foi cercada. Mas tudo em vão. A pé, percorrendo quilómetros ou à boleia, o cerco foi furado e mais de 4.000 democratas convergiram de todo o país, grande parte dos quais jovens, chegaram às ruas da cidade e superlotaram o Cine-Teatro Avenida.

Esta imensa mobilização não se limitava contudo ao Congresso. Na clandestinidade, eram conduzidas dezenas de pequenas e grandes lutas nas fábricas, nos campos, entre a juventude. Na Universidade (por exemplo, na Faculdade de Economia do Porto) cresciam as greves.

Nas Forças Armadas desenvolvia-se um largo movimento de consciência democrática entre os militares e já tinham começado a nascer encontros e discussões pronunciadoras. Alguns oficiais, nos quais o subscritor deste depoimento se inclui, (cerca de duas dezenas) estiveram presentes clandestinamente neste Congresso.

Quando alguns pretendem reescrever a história, branqueando o fascismo e omitindo ou reduzindo ao máximo o papel dos antifascistas e revolucionários é oportuno lembrar, designadamente para as jovens gerações, o 3º Congresso de Oposição Democrática e tudo quanto o rodeou. Como foi possível a mobilização e o êxito do Congresso? Não significaria que o regime se estava a democratizar, como proclamava à época a chamada “ala liberal”? Não era o Congresso, como afirmavam outros, uma concessão do regime que poderia conduzir ao branqueamento da ditadura e que poderia aparecer aos olhos do mundo como um regime de liberdade onde a oposição até podia realizar as suas iniciativas?

A vida provou que aqueles que sempre se bateram pela realização do Congresso tinham razão. O Congresso realizou-se e foi um êxito porque o fascismo não teve forças para conter o imenso movimento democrático e popular que crescia no País desde as eleições de 1969. A repressão que se abateu sobre o Congresso foi a prova de que o regime não se estava a abrir. Contribuiu para o isolamento internacional da ditadura e para o caminho que abriu as portas do 25 de Abril.

O Congresso só foi, entretanto, possível com um amplo entendimento e forte empenhamento das diferentes componentes das forças democráticas com especial relevo para os comunistas, os socialistas e os então chamados católicos progressistas com base num intenso diálogo.

Na declaração final do Congresso pode ler-se: “os milhares de democratas – reunidos em Aveiro - têm a consciência de que esta reunião – a que o Governo foi obrigado por pressão das condições internas e para tentar melhorar a sua imagem internacional - constitui uma grande vitória das forças democráticas. A longa mobilização de democratas efectuada em todo o País em torno da organização dos trabalhos, da elaboração das teses e do debate dos problemas apresentados, veio no seguimento da movimentação democrática crescente, ao mesmo tempo que traduz o descontentamento cada vez maior da população portuguesa em face do constante agravamento dos problemas fundamentais do País”.

Como objectivos imediatos o Congresso definiu a luta pelo fim da guerra colonial; a luta contra o poder absoluto do capital monopolista e a conquista das liberdades democráticas.

Hoje justifica-se explicar que o relevo e importância da fixação destes três precisos objectivos não derivam naturalmente do ponto referente à «conquista das liberdades democráticas» (desde há muito património comum das diversas correntes da oposição) mas sim dos pontos referentes ao «fim da guerra colonial» e da «luta contra o poder absoluto do capital monopolista», objectivos de há muito sustentados pelos verdadeiros democratas. A definição destes três grandes objectivos e a assunção dos seus indissolúveis nexos, iluminando «a contrario sensu» a verdadeira natureza da ditadura fascista, não só marcaram decisivamente a intervenção da oposição democrática na farsa eleitoral de Outubro de 1973 como influenciaram o pensamento político do Movimento dos Capitães, viriam a ter uma aproximada consagração no «Programa do MFA» e viriam a plasmar-se na vida como componentes cruciais da Revolução de Abril. A mobilização popular e a luta por um regime de liberdade ajudam a compreender muitos aspectos programáticos retomados um ano depois nos textos do MFA e na luta do Portugal de Abril, que não nasceram por geração espontânea ou por uma aceleração artificial da história mas na continuidade de um processo de exigência e de luta com origem nos movimentos democráticos da oposição à ditadura e nas suas diversas componentes.

Como já foi referido, o 3º Congresso da Oposição Democrática representou um importante passo na unidade na acção das principais forças e sectores democráticos (comunistas, socialistas – então ainda agregados na Acção Socialista Portuguesa mas à beira da fundação do PS –, católicos progressistas) só possível porque, entretanto, se foram desvanecendo as ilusões e rectificando as concepções erróneas que alguns sectores democráticos (e sobretudo a ASP) tinham perfilhado aquando da substituição de Salazar por Marcelo Caetano e nos primeiros tempos do «marcelismo». Mas, por respeito pela verdade histórica, é necessário observar que se esse passo teve especial consagração e desenvolvimento no encontro realizado em Paris entre delegações do PCP e do PS em Setembro e na estreita e leal cooperação de comunistas e socialistas nas «eleições» de Outubro de 1973 isso não significa, porém, que não tenham permanecido no campo da oposição consideráveis controvérsias e que algumas evidentes lições do 3º Congresso não tivessem sido, só por si, bastantes para evitar que diversas personalidades democráticas (tanto de tendências mais moderadas como de tendências mais radicais) decidissem desvalorizar e rejeitar a intervenção democrática na «farsa» eleitoral» subsequente.

Quarenta anos depois, é caso para perguntarmos: quantos temas existem hoje que aguardam e reclamam novos entendimentos à esquerda (mas entendimentos leais, à luz de politicas criadas no espirito dos Congressos da Oposição, da alvorada libertadora do 25 de Abril e das conquistas da Revolução) dando corpo ao apelo final da carta-testamento de Mário Sacramento, citada na intervenção de encerramento do Congresso pelo Prof. Lindley Cintra: “Façam um mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá”.

Mas também honrando a memória da luta quarenta anos volvidos sobre a comovente e corajosa jornada do 3º Congresso da Oposição Democrática, sendo essencial evocar as contribuições determinantes para a sua realização e o seu êxito, é também de inteira justiça evocar o papel e o mérito de todos os homens e mulheres, vivos ou infelizmente já falecidos, de diversos quadrantes, que o ajudaram a erguer e a fazer dele um momento marcante no nosso percurso colectivo para a liberdade. E, propositadamente prudentes na tentação de nele procurar outras projecções ou lições para a actualidade, concluamos ao menos afirmando que o 3º Congresso da Oposição Democrática foi há muito tempo mas dele e de tantos outros episódios da luta antifascista continuam vivos o valor das convicções e a determinação de luta que impulsionam, a confiança nos objectivos em que se acredita mesmo que não se saiba nem se anteveja quando se realizarão, a esperança de um país melhor e mais justo a ser construído pela acção colectiva e pela inteligência, trabalho e luta dos portugueses.

[Como já referido estivemos presentes (clandestinos) nas últimas sessões e sessão de encerramento do congresso (a 7 e 8 de Abril) e assistimos ao vivo, manhã cedo, à preparação do aparato policial junto ao edifício do tribunal e depois, durante a manhã, à feroz carga, na avenida central, sobre os congressistas e aderentes. Não contivemos a nossa raiva e reagimos entrando com o carro que conduzíamos pela avenida acima. Foi patético o encontro com o policial a quem exigimos o cumprimento (a continência) depois de parados e ameaçados. Este acto intrépido mas solidário com o “congresso” teve profundo significado na nossa vida futura. Durante dois dias distribuímos um documento/manifesto, que no passado dia 1 tínhamos apresentado às hierarquias militares, denunciando o obscurantismo e a falta de liberdade do regime. As hierarquias militares com receio de criar uma “vítima”, numa época delicada de contestação generalizada, não oficializaram uma punição formal mas apressaram a nossa “deportação” (em comissão militar) para a colónia da Guiné-Bissau.]