CAPÍTULO III

DEPOIMENTOS

Tal como referimos nas primeiras páginas apresentamos a seguir depoimentos desenvolvidos por dirigentes da ACR/Associação Conquistas da Revolução sobre temas relacionados, quer com a luta antifascista, próxima do 25 de Abril, quer sobre outras questões pouco referidas nos diplomas legais cuja divulgação, 40 anos depois, nos apraz reforçar.

DINAMIZAÇÃO CULTURAL (25 de Outubro de 1974)

Manuel Begonha, fundador e Presidente da Direcção da ACR

Imediatamente após o 25 de Abril de 1974, era admissível que existisse uma certa perplexidade, senão desconfiança, relativamente ao papel dos militares na Revolução, atendendo a que num passado recente, aparecia como um dos sustentáculos do regime, devido ao seu envolvimento na Guerra colonial.

Por outro lado, emergia um amplo movimento de clubes, associações e grupos de civis que há muito combatiam o regime fascista em diversas frentes, nomeadamente no campo cultural.

Entretanto, os militares eram cada vez mais solicitados a dirimir questões laborais em empresas situadas próximo das respectivas unidades. Com a ocorrência do golpe contra-revolucionário de 28 de Setembro de 1974 e a queda do General Spínola que sempre se opôs a que os militares saíssem dos quartéis, estavam criadas as condições para enviar as forças armadas para o terreno, juntamente com os civis, envolvidos no objectivo geral de em conjunto, construírem a revolução com um suporte cultural considerado indispensável.

Em 25 de Outubro de 1974, numa conferência de Imprensa na Biblioteca do Palácio Foz, é anunciado o início das campanhas de dinamização cultural, sob a coordenação de uma direcção militar, a Comissão Dinamizadora Central (CODICE), integrada na 5ª Divisão do EMGFA, composta por nove oficiais, três por cada Ramo das Forças Armadas e da Direcção-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, subordinada ao Ministério da Cultura.

No entanto, devido à criatividade e determinação de Ramiro Correia, 1º tenente médico naval - primeiro coordenador da CODICE, até 20 de Junho de 1975 quando tomou posse da chefia da 5ª Divisão do EMGFA, tendo sido substituído pelo cap.ten EMQ Manuel Begonha - a direcção destas campanhas passou progressivamente a ser efectuada pelas Forças Armadas.

Para a respectiva execução foram então definidos os seguintes objectivos:

1. Divulgar e esclarecer o programa do MFA

2. Esclarecimento sobre o acto cívico de votar

3. Movimentar as FA’s nas zonas fronteiriças e interiores, como demonstração que o 25 de Abril, tinha dimensão nacional e desencorajar tentações da Espanha franquista de intervir militarmente devido à existência do Pacto Ibérico.

4. Credibilizar perante o povo português, a disciplina, coesão e capacidade das Forças Armadas, lançando no terreno forças especiais (Fuzileiros, Comandos e Paraquedistas) bem equipadas, uniformizadas, preparadas e enquadradas, bem como cadetes das escolas militares.

5. Demonstrar que o MFA não era apenas constituído por oficiais, mas igualmente por sargentos e praças.

Nesta fase inicial e preparatória, propuseram-se deslocações de elementos da CODICE ao Porto, Coimbra e Faro para divulgação, junto às autoridades civis e militares e também da Igreja, dos objectivos das campanhas.

Todas as campanhas obedeciam a directivas e eram suportadas por textos de apoio onde se registou claramente que as Forças Armadas eram apartidárias, mas não apolíticas, para melhor conhecimento dos costumes, tradições linguagem e cultura dos locais a visitar, procedia-se a uma formação prévia dos militares integrantes das campanhas, no Centro de Sociologia Militar, adstrito à 5ª Divisão.

Numa 1ª fase as campanhas percorriam uma determinada área, dispondo de forças militares especiais e de meios de animação cultural. Como exemplos mais marcantes referimos:

- Operação Distrito da Guarda (25NOV-7DEZ 74), coordenada pela EPAM, com a participação do Grupo de teatro “A Comuna”, da “Orquestra Gulbenkian” e a banda militar “Alerta está” e projecção de filmes;

- Operação Nortada (Trás-os- Montes, 9 -18 JAN 75) com o Batalhão de Comandos e os Grupos de teatro “A Comuna” e “La Quadra” (espanhola) e projecção de filmes;

- Operação Castelo Branco (23JAN-2FEV 75) com os Grupos de teatro “Os Bonecreiros”, ”Teatro Português de Paris, “La Quadra” e a banda militar “Alerta está”. Foi ainda desenvolvida uma vasta acção de levantamento de carências locais por equipas de médicos, engenheiros, agrónomos, economistas e veterinários dos três ramos das Forças Armadas;

- Operação Verdade( Alto Minho, 31JAN-9FEV) com paraquedistas e o Grupo de teatro “A Comuna” e o Conjunto musical “Boinas Verdes” da Força Aérea;

- Operação Atlântida (Açores, 1-20MAR 75), com Grupos de teatro, marionetes e orquestra ligeira com envolvimento de militares dos 3 Ramos das FA’s;

- Maio-Nordeste (Distrito da Guarda, Maio a 8 de OUT 75), na qual foram integrados meios humanos e materiais, decorrentes da existência de Gabinetes de apoio, entretanto criados.

A dificuldade na obtenção de meios, especialmente máquinas de engenharia disponíveis em várias unidades militares, começou a constituir um entrave à construção de infraestruturas para a população mais necessitada, reflectindo as contradições já existentes a nível do MFA - Forças Armadas e MFA - aparelho de Estado.

A retirada desta campanha consumou-se devido às pressões verificadas pelo comando da Região Militar Norte, tendo sido a última até ao 25 de Novembro.

Ficou por iniciar uma grande campanha no Alentejo prevista para Agosto e Setembro, destinada ao reforço da Reforma Agrária, garantindo as sementes e os adubos às Cooperativas Agrícolas e o fornecimento de técnicos de contas, agrónomos e meios de engenharia civil para o levantamento de barragens de terra.

Para além destas campanhas desenvolveu-se ainda um conjunto de intervenções em vários países com militares apoiados pela Secretaria de Estado da Emigração, nomeadamente na França, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Inglaterra, Bélgica e Suiça, com a participação dos “Coros da Academia dos Amadores de Música” e da “Companhia de Teatro Rafael de Oliveira” e do Sector de artes plásticas da CODICE.

Apesar do esforço despendido, verificou-se existir uma fácil recuperação das forças contra-revolucionárias, após a passagem dos meios disponíveis nas campanhas, pelo que se decidiu aproveitar as unidades militares de quadrícula espalhadas pelo território nacional, para arrancar com a 2ª fase que implicava fixar militares no terreno, privilegiando-se assim os contactos locais em prejuízo de um processo mais itinerante.

Deste modo, foram constituídas Comissões Dinamizadoras Regionais e Distritais e Sub-Comissões. Este tipo de campanha permitiu intervenção em todo o país, desenvolvendo actividades com a população local, tais como:

- Acções no campo da veterinária, destacando-se o combate à brucelose;

- Criação de jardins e parques infantis;

- Electrificações;

- Execução de pinturas murais;

- Construção de estradas e caminhos, saneamento básico;

- Apoio médico sanitário como a lotação e apetrechamento em meios materiais de hospitais no distrito de Viseu com médicos militares;

- Apoio à Agricultura, planos de rega e barragens de terra;

- Fomento desportivo com a construção de recintos desportivos;

- Criação de Grupos de Teatro;

- Apoio a centros culturais, cine clubes e artes plásticas com cedência de diversos materiais como máquinas de filmar, tintas, etc.;

- Dinamização de organizações populares;

- Acções nos campos da Agricultura e Pescas em colaboração com o IRA, SADA e outros organismos da Reforma Agrária e formação de cooperativas de pescadores;

- Apoio técnico a Cooperativas e Comissões Liquidatárias de Grémios da Lavoura;

- Colaboração no projecto da Rede Nacional de Frio;

- Edição de pequenos manuais sobre electrificação.

Como exemplo relevante desta fase das campanhas, destaca-se a levada a cabo no Distrito de Viseu, focada em Sernancelhe e Castro de Aire que realizou um pouco de todas as acções acima descritas, tendo sido iniciada em 19 de Março de 1975. Face ao volume e qualidade dos trabalhos realizados e em curso, apenas terminou em Abril de 1976, já com a 5ª Divisão do EMGFA em reestruturação e a CODICE extinta.

Finalmente e para estruturar os meios a gerir as campanhas no terreno e para recolher e tratar os dados fornecidos, entrou-se na 3ª fase que implicou o desenvolvimento da Acção Cívica, com a constituição de Gabinetes de Apoio, englobando e reorganizando o controlo das várias actividades algumas delas em funcionamento desde o início, como a literatura, música, teatro, cinema e artes plásticas.

Eram os seguintes os Gabinetes de Apoio:

- Apoio cultural - meios de animação e dinamização cultural;

- Apoio exterior - emigração e novos países africanos;

- Comunicação - artes plásticas, imprensa, fotografia, Rádio e TV;

- Apoio às Campanhas - logística e pessoal.

Estes Gabinetes dispunham de dezenas de técnicos, especialmente oficiais milicianos com licenciaturas que trataram e encaminharam centenas de relatórios provenientes das várias Comissões Dinamizadoras. Durante a restruturação da 5ª Divisão e numa época revanchista após o 25 de Novembro, toda esta documentação muitíssimo útil foi mandada queimar, juntamente com várias colecções dos boletins do MFA.

Entre campanhas de dinamização, sessões públicas e de esclarecimento e intervenções em empresas, cobrindo todo o país, foram efectuadas mais de 10000 iniciativas.

Na falta de apoio fornecido pelas unidades militares, a prática comum era comer e dormir onde possível, até no chão, algumas vezes tornado necessário.

Para os que intervieram neste processo viveu-se uma experiência de galvanização e de esperança irrepetível. Centenas de criadores, dos mais relevantes existentes em Portugal, desde os artistas plásticos, escritores, actores, artistas de circo, músicos, bailarinos, cantores, cineastas a jornalistas, deram o seu melhor contributo à Revolução cobrindo este país de cartazes, murais, tarjetas, livros, representações e todas as formas de elevação cultural e cívica do povo que não poderão ser esquecidas.

A 26 de Novembro de 1975 a Comissão Dinamizadora Central foi extinta.

Os militares que representavam a CODICE e os que se empenharam nas unidades militares e nas campanhas para levar o programa do MFA até ao fim, foram exilados, presos, licenciados ou enviados à situação de onde haviam sido requisitados.

Relacionado com este tema não podemos deixar de assinalar o importante papel desempenhado pelos militares que a seguir referimos.

O Primeiro-tenente M.N. Ramiro Correia, cuja memória a nossa Associação recentemente homenageou, foi um dos activistas destacados da Dinamização Cultural. Colocado na Junta de Salvação Nacional colabora com o Conselho de Cultura e Espectáculos. Integrado na 5ª Divisão do EMGFA veio a fazer parte do Conselho da Revolução. Chefiou, por fim, a referida 5ª Divisão do EMGFA.

Autor do livro “MFA e luta de classes” e co-autor do livro “MFA-Dinamização Cultural e Cívica”

O Coronel Varela Gomes, associado da ACR, figura destacada da resistência anti-fascista e operacional responsável pelo designado Golpe de Beja, foi, no pós-25 de Abril, Chefe da 5ª Divisão do EMGFA e um dos militares mais activos e empenhados no processo pela luta das conquistas da revolução e da sua defesa, bem como da Dinamização Cultural e, ainda, da criação das bases dum “Centro de Sociologia Militar”.