CAPÍTULO III

DEPOIMENTOS

Tal como referimos nas primeiras páginas apresentamos a seguir depoimentos desenvolvidos por dirigentes da ACR/Associação Conquistas da Revolução sobre temas relacionados, quer com a luta antifascista, próxima do 25 de Abril, quer sobre outras questões pouco referidas nos diplomas legais cuja divulgação, 40 anos depois, nos apraz reforçar.

CULTURA E SABER TAMBÉM SÃO CONQUISTAS DA REVOLUÇÃO

Modesto Navarro, fundador e dirigente da ACR

O acesso à cultura e ao conhecimento, à liberdade de expressão e de reunião, foram objectivos claros da intelectualidade portuguesa que fez opção pela mudança da situação política e das mentalidades, colocando-se ao lado da classe operária, dos trabalhadores e das populações mais desfavorecidas.

Antes da revolução de 25 de Abril de 1974, Ferreira de Castro, Assis Esperança, Aquilino Ribeiro, entre outros, e, desde muito jovem, Bento Jesus Caraça, acompanhados pelo aparecimento e a intervenção de intelectuais como Álvaro Cunhal, António Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, Óscar Lopes, Joaquim Namorado, Ruy Luís Gomes, Virgínia de Moura, Fernando Lopes Graça, Maria Lamas, abriram caminhos novos na esperança de uma outra vida, de justiça social, de crescimento e intervenção da classe operária e dos trabalhadores contra o fascismo e a exploração capitalista de que Bento Gonçalves foi exemplar dirigente e organizador, como secretário-geral do Partido Comunista Português e operário inovador, até ser deportado para o Tarrafal, para ali ser assassinado em 1942.

A frontalidade no combate ao idealismo presencista, em que Álvaro Cunhal teve um papel determinante, trouxe para primeiro plano, na literatura, nas artes plásticas e outras artes, a vida e o trabalho dos explorados e oprimidos, o grito da liberdade a construir, da democracia e da igualdade a conquistar.

Combateram os que eram “intelectuais” servidores da exploração humana, que silenciavam as injustiças e valorizavam as classes possidentes e opressoras e o sistema capitalista. Combateram a política do fascismo, a União Nacional e o SNI - Secretariado Nacional da Informação, que promoviam esses “intelectuais” e um folclorismo passadista, ao mesmo tempo que perseguiam intelectuais criadores e cientistas, que censuravam e proibiam livros, revistas, jornais, exposições, peças de teatro e iniciativas de esclarecimento nas colectividades de cultura e recreio, nas instituições representativas da intelectualidade que resistia, criava e se ligava ao movimento democrático unitário, nas suas várias expressões, ao longo de décadas, e, em grande parte, decisivamente, ao único partido que ficara a organizar-se e a intervir na clandestinidade e na resistência, o Partido Comunista Português.

A actividade cultural, social e desportiva das colectividades, clubes e outras associações por todo país, as bandas de música, as bibliotecas populares, o teatro amador, a acção de intelectuais como Bento Jesus Caraça, na Biblioteca Cosmos e na Universidade Popular, a criação do Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido por Fernando Lopes Graça, a intervenção organizada de intelectuais em actividades promovidas pelos associados de tantas instituições populares, culturais e científicas que resistiam ao fascismo e criavam condições para o acesso mais amplo e fraterno à cultura, ao conhecimento e à intervenção libertadora e organizada das classes exploradas e oprimidas, foram realidades consecutivas durante décadas do fascismo, enfrentando a repressão, a censura, a proibição e apreensão de livros, discos e outras obras de arte, que eram e continuam a ser património inestimável e valioso de todos nós.

O aparecimento de grupos de teatro profissional e amador como o Teatro do Salitre, o TEUC, os Bonecreiros, A Comuna, o Grupo de Campolide, que surgiram nas universidades e nos bairros populares; o movimento cooperativo livreiro, a Devir, a Vis, a Proelium, na região de Lisboa, a Unicepe no Porto, outras cooperativas em Coimbra, cidades e regiões; a criação da Associação Portuguesa de Escritores, depois do encerramento e destruição, pela Pide e pela Legião, da Sociedade Portuguesa de Escritores, por ter atribuído em 1964 um prémio literário a Luandino Vieira; o papel importante da Sociedade Portuguesa de Autores, na organização e defesa de direitos dos criadores e artistas; o ascenso do movimento sindical, na conquista dos sindicatos fascistas pelos trabalhadores; a luta pelas oito horas de trabalho nos campos do Alentejo e Ribatejo; a intervenção mais organizada e popular, a partir das “eleições” fascistas de 1969, com a CDE-Comissões Democráticas Eleitorais a continuarem activas nos bairros, nas freguesias, nas colectividades e associações populares; a conquista de melhores condições no ensino e nas actividades dos professores e pedagogos, na formação de maior consciência e conhecimentos; as lutas e greves dos trabalhadores nas empresas e nos campos; a Comissão de Defesa da Liberdade de Expressão; os Congressos da Oposição Democrática; o Socorro Vermelho e depois a Comissão de Apoio aos Presos Políticos; todos os movimentos e acções de trabalhadores, intelectuais, classes e camadas populares; as lutas contra a guerra colonial e pela conquista de direitos ao trabalho e à liberdade, as greves e movimentações por melhores salários e condições de vida, contra a censura, pela democracia e pelo fim do fascismo foram criando as condições para o aparecimento do que veio a ser o Movimento das Forças Armadas e a realização extraordinária e decisiva do golpe militar libertador em 25 de Abril de 1974, desde logo acompanhado e desenvolvido pela acção das massas populares e das forças políticas e sociais organizadas, que realizaram, com os militares progressistas, em cada frente e nas ruas, nas empresas e por todo o país, a Revolução de 25 de Abril que se prolongou e aprofundou no derrube das estruturas fascistas, na criação do poder local democrático, na democratização de outras áreas e instituições, na resistência a golpes como o 28 de Setembro de 1974 e a intentona de 11 de Março de 1975 (envolvendo Spínola e militares e civis já contra o 25 de Abril e pelo regresso ao passado), na nacionalização dos sectores produtivos e financeiros mais importantes e decisivos e na realização da reforma agrária.

As campanhas de alfabetização levadas a cabo por estudantes de universidades portuguesas, em vastas regiões do país, logo em 1974; as campanhas de dinamização cultural e acção cívica criadas e realizadas por militares, intelectuais, trabalhadores e outros civis, nomeadamente em regiões mais difíceis e onde o caciquismo e a ignorância eram armas dos mais ricos e exploradores e da igreja reaccionária; o aparecimento e a eleição de comissões de moradores e de trabalhadores, de novas colectividades e associações em bairros, aldeias, vilas e cidades; o controlo operário, a intervenção organizada e revolucionária nas empresas, nos campos e nas pescas; a eleição de comissões administrativas democráticas para as câmaras municipais e juntas de freguesia, colocando o poder local ao serviço das populações, do desenvolvimento económico e social, da cultura, do desporto e do ensino; a criação de creches, jardins de infância e novas escolas de 1º ciclo, de escolas preparatórias e secundárias nos concelhos do país; o acesso à intervenção organizada e popular por direitos e aspirações milenares e à condução dos próprios destinos; a transformação da SEIT (Secretaria de Estado de Informação e Turismo – antigo SNI) em Secretaria de Estado da Cultura, que ajudou à descentralização e ao apoio cultural nas regiões, ao teatro amador e profissional, às bandas e escolas de música, às artes plásticas, ao cinema e a todas as expressões que se materializaram também na rede de Centros Culturais Regionais, no ascenso e actividades das colectividades culturais e associativas, num rejuvenescimento e inovação nunca vistos; a criação do FAOJ - Fundo de Apoio às Organizações Juvenis, com apoio a estruturas e jovens interventivos em defesa e expressão de direitos, ambições e sonhos próprios; o aparecimento da Direcção Geral de Desporto, vocacionada para o desenvolvimento da actividade desportiva organizada em todo o país e para a construção de estruturas e equi-pamentos necessários à prática popular e desportiva; a afirmação das identidades culturais regionais e locais, a defesa do património cultural material e imaterial por associações específicas que foram criadas nas regiões e apoiadas pelas autarquias e por estruturas centrais da SEC; a formação de quadros de animação cultural e dirigentes associativos, a dimensão mais global e cultural do desenvolvimento social, educativo, associativo e político, o acesso generalizado dos trabalhadores e das populações à fruição e criação em diversas áreas da arte, da cultura e da ciência foram realidades que acompanharam o ascenso da re-volução e, depois, os combates e a resistência contra a destruição do 25 de Abril, da democracia e da Constituição da República Portuguesa, enfrentando um processo reaccionário que teve expressão muito perigosa no golpe de 25 de Novembro de 1975, contra as nacionalizações de sectores fundamentais da nossa democracia e independência nacional, contra a Reforma Agrária nos campos do Alentejo e do Ribatejo, contra a descolonização e a efectiva independência dos países e povos das ex-colónias, contra as liberdades e a organização política e social dos trabalhadores e do povo.

Aí começaram também os ataques ao desenvolvimento económico, social, cultural e político do povo português; a liberdade de expressão e de reunião atingidas, a censura nos meios de comunicação social, o controlo de jornais, rádios e televisão, a reconstrução dos grupos económicos do fascismo e a construção de outros potentados financeiros desde o 1º governo de Mário Soares, as limitações ao apoio cultural, associativo e desportivo pelas estruturas democráticas a nível central foram sendo realidades duras acrescentadas ano após ano, governo após governo, desde os governos do PS e Mário Soares aos de Cavaco Silva e PSD, secundados por outros governos com ou sem o CDS-PP, que envolveram o país na integração europeia destruidora da nossa independência livre e soberana, na moeda única suicidária e no endividamento brutal a que nos conduziram, na cobertura ao aparelho especulativo bancário e financeiro interno e externo, cavando esta situação profunda e grave de destruição generalizada de avanços e conquistas civilizacionais e de roubo de salários, reformas, pensões e outros direitos e condições para termos trabalho, liberdade, saúde, ensino, cultura e uma vida digna e afirmativa que engrandecem e transformam cada ser humano e o país no sentido de mais felicidade e conhecimento, de realização pessoal e colectiva de forma integrada e libertadora.

A mercantilização da cultura à escala mundial, o controlo ideo-lógico nos grandes meios de comunicação social, a destruição de estruturas centrais e regionais da SEC, entre outras, geradoras de apoios e responsabilidades, o ataque à cultura, as dificuldades de sobrevivência e o desaparecimento de orquestras, grupos de teatro e outras expressões culturais profissionais e amadoras; o pagamento generoso do capitalismo dominante a “intelectuais” servis, atentos e obrigados, a comentadores de serviço encastelados nestes e naqueles órgãos de comunicação controlados e domesticados; esse silêncio e essa miséria enorme de alienação, mentiras, “modas” perversas, dificuldades, roubo de condições de realização pessoal e colectiva, têm sido enfrentados e combatidos pelos trabalhadores, pela intelectualidade progressista e pelo povo português, sempre na perspectiva afirmativa de que a Revolução de 25 de Abril de 1974 e a Constituição da República Portuguesa são realidades vivas, aliadas e defendidas pela enorme experiência e saber dos trabalhadores, das classes e camadas organizadas e revolucionárias, que conduzirão à derrota dos inimigos e exploradores, dos que vivem e enriquecem à custa de quem trabalha e sofre.

Quem não luta, perde sempre. Quem luta, vai vencendo e construindo, nas derrotas e nas vitórias, esse mundo imenso de liberdade, de afirmação humana, de crescimento social, económico, cultural e político que conquistámos com o 25 de Abril, na revolução que fizemos e que continuaremos a defender e a construir, nas experiências e conquistas que realizámos e nas novas conquistas da revolução e do 25 de Abril que continuarão connosco e, sobretudo, na vida e na resistência dos jovens activos e revolucionários que aí estão, a nosso lado e já à nossa frente, na abertura de novos caminhos de fraternidade, de direitos ao trabalho, à independência e soberania do nosso país e do nosso povo.