Prefácio

O conjunto de históricos avanços sociais, políticos, económicos e culturais que designamos por Conquistas da Revolução, foi o resultado de um processo que teve na aliança Povo/MFA o seu motor decisivo e que constituiu a matriz da democracia avançada rumo ao socialismo, que viria a ser consagrada na Constituição da República Portuguesa.

Foi a aliança entre os militares revolucionários do MFA e o movimento operário e popular que, consolidando a liberdade conquistada no dia 25 de Abril de 1974, impulsionou a caminhada para as profundas transformações revolucionárias que mudaram radicalmente Portugal e a sua imagem no mundo: liberdade; paz; direitos laborais, sociais e culturais; nacionalizações; reforma agrária; descolonização; independência nacional.

Fruto dessa aliança foi, também, a designação, pelo MFA, do general Vasco Gonçalves para primeiro-ministro, o qual viria a desempenhar um papel determinante à frente de quatro governos provisórios, entre 18 de Julho de 1974 e 2 de Setembro de 1975, naquele que foi o período mais exaltante, inovador e criativo da revolução portuguesa.

Com Vasco Gonçalves, Portugal teve pela primeira (e até agora única) vez um primeiro-ministro que se identificava plenamente com os interesses dos trabalhadores, do povo e do País. Foi com Vasco Gonçalves como primeiro-ministro que o movimento operário e popular, em aliança com os militares revolucionários do MFA, avançou para as grandes Conquistas da Revolução, dando início ao processo de construção da democracia mais avançada alguma vez existente em Portugal: uma democracia amplamente participada, em que a opinião dos trabalhadores e dos cidadãos era estimulada e ouvida – e, por isso, contava; uma democracia que fez de Portugal o país mais avançado, na Europa, em matéria de liberdades garantidas e de respeito pelos direitos humanos.

É tudo isto que identifica profundamente o nome de Vasco Gonçalves com as Conquistas da Revolução.

As Conquistas da Revolução – conquistas políticas, económicas, sociais, culturais, civilizacionais – conduziram, desde logo, a significativas melhorias das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores e do povo e à definição de um projecto de progresso e desenvolvimento para Portugal. A par das liberdades democráticas – estas conquistadas pelo povo, nas ruas, através do seu exercício - o estabelecimento imediato do salário mínimo nacional, do aumento das pensões de reforma e de invalidez e do abono da família; o aumento dos salários e o congelamento dos salários superiores a 7 500 escudos; a generalização do direito a férias, com um subsídio equivalente ao salário; o congelamento dos preços e rendas dos prédios urbanos; os primeiros passos dados no sentido de assegurar, como direitos humanos fundamentais, o direito à Saúde e à Educação, foram conquistas que, pelo seu conteúdo, marcaram de forma iniludível o sentido do processo em curso.

Por seu lado, as nacionalizações, a Reforma Agrária, a descolonização - e a própria Constituição da República Portuguesa – afirmavam-se como pilar essencial da Revolução Portuguesa e do seu projecto de sociedade.

Nascidas no quadro da agudização da luta de classes, que opunha à Revolução o grande capital monopolista, as Nacionalizações abrangeram parte decisiva e determinante da economia nacional. A nacionalização dos sectores estratégicos da economia (banca, seguros, siderurgia, química, energia, comunicações, transportes, construção e reparação naval, cimentos, etc) produziu uma transformação revolucionária nas estruturas económicas e sociais de Portugal e abriu perspectivas novas à evolução da economia e da sociedade portuguesas. A derrota dos golpistas no 11 de Março e a força da luta organizada do movimento operário em aliança com o MFA, permitiram a concretização daquele que era um dos objectivos essenciais da Revolução Portuguesa, como um ano depois viria a sublinhar o general Vasco Gonçalves:

«As nacionalizações eram um objectivo a atingir no decorrer da revolução democrática subsequente ao 25 de Abril (…) As condições necessárias vinham amadurecendo através da luta que o movimento popular e o MFA empreendiam para combater a vasta acção de boicote que os monopólios desenvolviam. Mais: vinham amadurecendo através da luta pelas liberdades cívicas e sindicais, através das reivindicações da classe operária, através do esquema de intervenção do Estado no sector económico e, até, através do próprio fim da guerra colonial»

Em resumo: complementando o processo de liquidação do capitalismo monopolista de Estado e do poder dos monopólios resultante do derrubamento da ditadura fascista e da situação democrática decorrente, a nacionalização dos sectores básicos da economia liquidou o poder económico dos grupos monopolistas e os próprios grupos monopolistas - assim liquidando o que fora um dos sustentáculos básicos do regime fascista.

A Reforma Agrária foi vista pelo povo de Abril como a mais bela conquista da revolução. E assim foi. E assim ficará na memória dos que, de formas diversas, a viveram e a construíram, desde os tempos do fascismo - esse tempo de heróicas lutas dos assalariados rurais contra o latifúndio opressor e explorador, também ele sustentáculo básico da ditadura fascista – ao tempo novo de Abril, o tempo em que os assalariados rurais do Alentejo e do Ribatejo tomaram a decisão de avançar para as terras abandonadas e cultivá-las, numa altura em que a criminosa sabotagem económica levada a cabo pelos grandes agrários criava uma situação insustentável e punha em perigo a liberdade e a democracia acabadas de conquistar.

Nunca é demais relembrar o profundo significado do histórico processo de construção da reforma agrária nos campos do Alentejo e do Ribatejo: os 1 140 000 hectares de terra ocupados e a produzir, como nunca antes acontecera, logo ao fim de um ano – e atingindo níveis extraordinários de produção e produtividade, enriquecedores da economia nacional; os mais de 50 000 postos de trabalho criados, eliminando praticamente o desemprego; as 550 Unidades Colectivas de Produção/Cooperativas, estruturas de novo tipo, fruto da criatividade revolucionária dos trabalhadores e onde as velhas relações de produção latifundistas se transformaram em relações de cooperação e solidariedade, de carácter socialista, pondo termo, naquele universo e naquela situação concreta, à exploração do homem pelo homem; as preocupações sociais e humanas características de quem sabe que está a construir alicerces de uma sociedade nova, traduzidas designadamente na criação de uma vasta rede de creches, jardins-de-infância, postos de saúde, centros da terceira idade, bibliotecas. Tudo isto erguido na base de métodos novos e inovadores de funcionamento democrático, caracterizados por uma ampla, muito ampla, participação popular – de que são exemplo as 12 Conferências da Reforma Agrária realizadas, verdadeiros espaços de avaliação crítica do andamento das coisas, de balanço e prestação de contas do trabalho desenvolvido, de definição dos caminhos necessários para avançar mais e mais.

Tudo isto a confirmar-nos que, no futuro democrático de Portugal, a Reforma Agrária – com a liquidação do latifúndio e a entrega da terra a quem a trabalhe – é uma necessidade incontornável.

Vem a propósito relembrar palavras de Vasco Gonçalves sobre o tema: «a nossa Reforma Agrária é única no Mundo (…) na base de tudo está a intensa participação dos trabalhadores, a confiança nas suas próprias forças, na sua inteligência, a interligação constante entre dirigentes e dirigidos, a posição dos dirigentes que, oriundos das massas, a elas estavam ligados e sujeitos ao seu controlo, a terem de prestar contas ( …) houve, de facto, uma grande capacidade realizadora dos assalariados rurais e suas organizações políticas, nomeadamente o Partido Comunista Português. O que foi original na nossa Reforma Agrária é que foi uma luta única – única no Mundo, feita com grande esforço dos trabalhadores apoiados pelo Movimento das Forças Armadas. A Reforma Agrária mostra que é preciso lutar e que as massas consciencializadas, mobilizadas, têm força – os ideais transformam-se numa força material»

O processo de descolonização - ou seja, o fim da guerra colonial e a contribuição para a rápida independência dos povos submetidos ao colonialismo - constitui uma das grandes realizações da Revolução de Abril. Tratou-se de um processo que incluiu, como elemento decisivo, a luta do povo português e dos militares revolucionários pelo fim imediato da guerra colonial, pelo reconhecimento imediato do direito à independência e pelo reconhecimento dos verdadeiros movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas como únicos e legítimos representantes dos povos respectivos, como únicos interlocutores válidos para negociações e em condições de formarem governo após a conquista da independência.

A conquista da independência dos povos antes submetidos ao colonialismo português foi uma vitória histórica desses povos – da luta determinada e corajosa que travaram contra o colonialismo e pela sua independência – e foi uma vitória, igualmente histórica, das forças revolucionárias e progressistas de Portugal.

A consagração das Conquistas da Revolução na Constituição da República Portuguesa aprovada em 2 de Abril de 1976, bem como a perspectiva de abrir caminho para uma sociedade socialista, conferem à Lei Fundamental do País um carácter muito peculiar e fazem dela o mais avançado e progressista texto constitucional da Europa. Apesar de aprovada e promulgada já depois da alteração da correlação de forças que levaria ao 25 de Novembro de 1975, a Constituição da República Portuguesa é um retrato fiel da revolução e, mesmo após as sete revisões a que foi submetida – todas elas roubando-lhe pedaços de Abril – permanece como referência essencial para os trabalhadores e o povo na sua luta contra a política de direita. Essa política de direita que, praticada há 38 anos pelo PS e pelo PSD (sozinhos, ou coligados entre si, ou de braço dado com o CDS/PP), vem liquidando Abril e as suas conquistas e flagelando os interesses e direitos da imensa maioria dos portugueses. Essa política de direita que, agora sob o comando da troika estrangeira à qual a troika nacional escancarou as portas de Portugal e tem vindo a entregar a independência e a soberania nacional, fez da revolução de Abril e dos seus valores o alvo primordial a abater. Essa política de direita para a aplicação da qual os sucessivos governos PS/PSD/CDS-PP têm recorrido ao espezinhamento e violação da Constituição da República, situando-se, assim, todos eles, fora da Lei Fundamental do País.

Tudo isso faz da defesa da Constituição um objectivo essencial da luta dos homens, mulheres e jovens de Abril, como alertou Vasco Gonçalves num texto produzido em 1977, numa altura em que as forças da contra-revolução disparavam raivosamente contra tudo o que cheirasse a Abril:

«O essencial da Constituição Portuguesa está de acordo com as grandes transformações revolucionárias operadas no decurso do nosso processo revolucionário.

A essas transformações revolucionárias chamamos Conquistas da Revolução e uma delas é a própria Constituição (...) A defesa da Constituição Portuguesa é, portanto, a defesa das Conquistas da nossa Revolução».

Hoje, quando assinalamos o 40º aniversário do Dia da Liberdade e do início da Revolução de Abril, as grandes Conquistas da Revolução foram, praticamente todas, destruídas e a Constituição da República Portuguesa é todos os dias submetida a tratos de polé pelos inimigos de Abril que detêm o poder - de tal modo que bem se pode dizer que, em muitos aspectos, estamos hoje mais próximos do 24 do que do 25 de Abril.

E o caminho capaz de criar as condições para inverter este rumo de desastre e afundamento nacional e conquistar soluções inspiradas nos valores e nos ideais de Abril, passa, em primeiro lugar, pela luta organizada das massas trabalhadoras e populares, dos democratas e patriotas.

Vale a pena recordar palavras de Vasco Gonçalves, dirigidas a dirigentes e activistas sindicais, numa sessão comemorativa do 30º aniversário de Abril:

«Os trabalhadores portugueses devem alertar e mobilizar o país com a sua acção. Unidos, coesos, conscientes dos seus deveres para com os seus compatriotas, para a defesa das conquistas obtidas depois do 25 de Abril. (Que são) Repito: as liberdades e garantias individuais; as novas relações de trabalho; a unidade sindical; as nacionalizações; o controlo da produção pelos trabalhadores e a Reforma Agrária. Estais dispostos a perder isto? Ou estais dispostos a lutar por isto?»

A resposta dos trabalhadores às duas perguntas não oferece dúvidas, como o confirmam a dimensão e a força da luta levada a cabo nos últimos tempos – luta contra a política das troikas e por um novo rumo que promova e afirme um Portugal democrático, justo, soberano e desenvolvido.

Luta difícil, porque travada contra um inimigo poderoso e que não olha a meios para alcançar fins. Mas luta para vencer, porque travada por homens, mulheres e jovens inspirados nos valores e nos ideais de Abril e conscientes de que Abril vencerá. Porque Abril é o futuro.

Associação Conquistas da Revolução